29 julho 2008

Meu catecumenato na ludocópula e o sonho de titia

conto escrito por Tico, publicado no livro “Elas etc.”

Enquanto ela, vestido suspenso, uma nesga de coxa descoberta, vericava com um dos pés a temperatura da água do chuveiro, no quarto o homem falava pelo telefone e espiava pela janela a rua deserta. Era de madrugada e eles tinham chegado do bar. Ela se despiu e entrou no banho. Ele desligou o telefone, fechou as cortinas e pôs sobre a mesa o revolver que trazia à cintura. Apagou o abajur e dirigiu-se ao banheiro. Nessa hora, a penumbra da sala ganhou um matiz roxo-azulado e eu senti a pressão da mão de Keyla no meu colo, vi os seus dedos deslizarem para abrir o zíper da minha calça. Ocultei seus movimentos com a camisa que há pouco tirara, e de soslaio procurei ver se éramos observados. Foi então que ouvi os primeiros cochichos alusivos à tatuagem nas minhas costas. E parece que Keyla também, pois ela me abraçou e sorriu debochada. O casal na tela bebia conhaque sob as cobertas. O homem levantou-se, nu, com o copo na mão, apanhou a arma e a trouxe para o criado-mudo. Keyla percebeu os rumores crescendo ao nosso redor e, do riso sarcástico, passou à coléra. O homem deitou-se a mulher o beijou. Mais comentários. Enfurecida, Keyla nem chegou a ver a cena de sexo. Ergueu-se e mostrou o dedo médio em riste para toda a platéia.
_Caretas! Bundões! - gritava ela. - Moralistas enrustidos do cacete!Vêm ver filminhos de arte porque um intelectualzinho de merda disse na Ilustrada que é bom. Mas não estão entendendo porra nenhuma. Vocês consomem os guias culturais e as resenhazinhas sobre arte com a mesma sofreguidão e frivolidade que os leitores de Caras. Vocês devoram os segundos cadernos com objetivo idêntico ao dos malhadores crônicos, ao das patéticas figuras que se submetem a todo tipo de dieta para se livrar das gordurinhas a mais. Vocês, assim como esses compulsivos ergométricos, almejam um padrão que lhes foi imposto. Não fazem nada por prazer. Eles não se deleitam com o sol, nem vocês com a arte. Querem apenas, eles, um corpo tostadinho e rijo, e, vocês, um discursinho cabeça e pernóstico. Pra isso, eles suam feito imbecis nas esteiras e vocês babam nas exposições. Galeria, teatro, museu estão pra vocês assim como academia, clube, praia estão pra eles. Mas tudo é falso, Hipócritas! Vão passar a vida como dublês de clones. Se exercitando para se enquadrar no modelo determinado. Tentando fazer ginástica intelectual e sentindo fome de telenovelas. Quem sabe até, induzidos por seus preconceitos, não assaltem de madrugada o quartinho da empregada, em busca de material que os sacie? “Algumas folhinhas de Contigo e umas linhazinhas de Sabrina não poderão me fazer mal; o importante é que ninguém saiba!” Vocês nunca passarão por isso. Serão sempre burros. Néscios crônicos. Insensíveis. Com celulites medonhas na massa cinzenta. Porque vocês não se entregam e, então, não há regime a base de Bergman ou Proust que tire a banha desse cérebros adiposos. Ainda não inventaram silicone pros neurônios. Aprendam a gozar, burgueses do caralho; senão, vão morrer assim, sofrendo de mediocridade mórbida e idiotismo agudo. Eu desprezo vocês. Babacas! Sem estilo e sem tesão. Vulvas secas e broxas! Todos aí! Eu respeito mais quem fica em casa à noite vendo televisão e, de manhã, liga o rádio AM pra saber o que diz o horóscopo. Pelo menos, são mais honestos. E mais felizes...- Ela ofegava, uma pasta branca de saliva nos cantos da boca; enroscou mais uma vez atrás da orelha um esguia madeixa que teimava em pender pelo seu rosto, arrancou a flor que lhe enfeitava os cabelos, esmigalhou-a nas mãos e arremessou-a com ímpeto contra a chusma atônita de cabeças. _Querem saber?... Comprem o CD do Chitãozinho e Xororó, o livrinho do Paulo Coelho ou do Lair Ribeiro e fodam-se. Vão mastigar hambúrguer no McDonalds.
Não interromperam a fita, mas já haviam acendido as luzes e chamado os seguranças, que procuravam conversar amistosamente conosco. Porém Keyla encontrava-se como que alucinada. Teria ela tomado alguma bola junto com o gim no Riviera?
Numa das mãos, eu apertava a camisa embolada, ao avesso, esfregando-a às vezes na cara para enxugar o suor que me escorria pela barba; com a outra, tentava arrastar Keyla dali.
Já estávamos atravessando a porta da saída de emergência, e eu cheguei a supor que o episódio, finalmente, se encerrara, quando ela ouviu alguém engrolar qualquer coisa como “civilidade”. A palavra teve o efeito de uma senha que dispara instantaneamente um mecanismo. Keyla se inflamou novamente e atingiu o paroxismo de sua veemência. Com um gesto bruto, soltou o braço de mim, arreganhou as cortinas e voltou a berrar para todos lá dentro:
_Civilidade é a puta que os pariu, Reacionários! Só porque o cara tirou a camisa no cinema?!... Vem cá – me puxou-, mostra o pau pra eles. Mostra o pau pra eles, porra! - insistia, enlouquecida.
Deixamos o cinema e, na calçada, eu encarei-a demoradamente. Keyla parecia iluminada. Seus olhos cor de terra cintilavam e ela estava mais linda do que nunca.
Atravessamos a Consolação, e o riso gostoso de Keyla ficou ecoando na galeria subterrânea. Caminhamos abraçados até o carro. Ela remexia na bolsa, à procura da chave, quando, de repente, estacou. Levou o dedo à boca me pedindo silêncio e olhou para o alto, em direção a uma das árvores do cemitério.
_Ouviu?... - perguntou. - Acho que é uma coruja.
Eu não escutava nada. Tentei falar e ela me impediu, tapando-me suavemente a boca com a mão.
Eu podia vislumbrar o esmalte cor-de-rosa de suas unhas brilhando na sombra da rua soturna e sentia o perfume dos seus dedos se misturando ao olor doce de flores que subia por detrás do muro.
_É sorte – ela sussurrou, sem desprender a mão dos meus lábios. - O canto da coruja é de bom agouro. Traz felicidade. Pra mim, foi um sinal. Tá na hora. Tem de ser e será hoje – sorriu, um pouco misteriosa, e foi afrouxando os dedos. Deixou cair o braço e ficamos alguns minutos calados, apenas nos fitando. O ronco da moto que passou por nós foi sendo engolido pelo túnel da Rebouças até desaparecer.
Antes que eu pudesse exprimir minha perplexidade, ela já brandia o chaveiro, com um misto de candura e safadeza no olhar.
_Tá esfriando. É melhor você pôr a camisa – me falou ao entrarmos no carro.
Vermelho, verde ou amarelo, ela não parou em nenhum farol até a vila em que eu morava. Nem me disse mais nada durante todo o trajeto.
Quando paramos diante do quintal da minha casa, o CD do Djavan que viéramos ouvindo ainda tocava no aparelho.
_Não posso contraria a corujinha – ela balbuciou, suspendendo a minissaia e revelando-me a vasta cabeleira de azevische, em encantador contraste com a alvura de suas coxas tenras.
Pulamos para o banco de trás. Os livros amontoados, tomando inteiramente o assento, em nada nos embaraçaram. Assim que saltamos, despencaram pelas nossas pernas e sobre nós carlos Drummond, Marta Medeiros, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Clarisse, Oswald, Hilda Hilst, Rimbaud, Manoel de Barros...Era delicioso e excitante nossos corpos nus e suados cobertos de poesia.
_Agora entendo...- gemeu Keyla, mordiscando-me a orelha. - Você sempre disse que, para captarmos e sentirmos plenamente os poetas, temos que nos desnudar diante deles...
Afastei o Caio Fernando Abreu que lhe cobria as tetinhas, tirei de cima do seu umbigo os bigodões do Gorki, abracei-a com vigor, por inteiro, e entregamo-nos fervorosos àquela liturgia orgiástica, com muitos de nossos melhores companheiros testemunhando e compartilhando nossa paixão.
A moça que atravessa o verão sem calcinha e sem sutiã, que só bebia gim puro, que contestava os professores - “superficiais e entediantes, na sua maioria” -, e que, por isso, abandonara pela metade três cursos universitários, que dirigia sem carta, que fumava maconha com o avô e que tivera a coragem de fazer um discurso daqueles em minha defesa no cinema era virgem. E esse aparente paradoxo a tornava ainda mais adorável.
Keyla: irreverentemente pura. Imaculadamente transgressora. Á-bê-cê de paixão – arguta, belfuda, calipígia. Keyla sinestésica. Foi o que eu lhe disse, com termos e pronúncia à maneira poética da brincadeira verbal com que costumávamos nos divertir, sobretudo na presença de outras pessoas, lançando-nos inesperadas declarações, breves e quase herméticas. Como quem declamasse um segredo:
_Os matizes canórios de sua redolência e a fragrância de suas notas furta-cores, flor melodiosa, sabem-me a sobro umectante de flauta vegetal – falei e descansei o rosto em seu braço esquerdo, bem sobre o sinal da vacina, fruindo o terno tesão que o contacto com aquela moedinha levemente oblonga há anos estampada aí sempre me propiciava. Lambi o meu tesouro. Não contra catapora ou sarampo – a marquinha da vacina de Keyla tornava-me também imune, mas ao tédio e a qualquer desesperança. Era meu amuleto e meu fetiche. Afagá-la protegia-me.
_O quê??! - indagou Keyla, num tom maroto e com um ar espantado de incompreensão.
Porém, se não alcançara o sentido da frase, podia-se perceber na expressão do seu olhar que apreendera o sentimento, que fora tocada pelas palavras. Ela sorriu e me beijou a boca. Cantarolou os versos de uma canção de Dolores Duran:
_“Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem”...
Casamo-nos ali, no banco do carro, tendo por madrinhas e padrinhos os maiores conhecedores de nossas almas e algumas estrelas que fulguravam solitárias naquela madrugada de final de janeiro.
Quando a alvorada irrompeu, não fossem os vidros completamente embaciados, quem passasse por aquela ruazinha de terra ainda poderia ver um casal se amando ardorosamente dentro de um fusca vermelho que reverberava ao sol da manhã.
Nesse dia, não fui trabalhar. Assim que Keyla partiu, desci até a avenida para pegar pão e leite. Comprei também um sonho. Quando entrei em casa, titia ainda dormia. Coloquei o saquinho na mesa, paguei a moça que trabalhava em casa e fui para o banho. No chuveiro, fiquei me recordando dos acontecimentos da noite passada. Eu me sentia feito um menino. Fechava os olhos debaixo da água morna e parecia-me incrível aquilo tudo. Era como se não fosse apenas Keyla quem tivesse deixado de ser virgem. Na verdade, ela inaugurara em mim um novo mundo de prazeres. Que me desvelara os verdadeiros sabores do sexo. Eu, que me arvorava em profundo sabedor dos traquejos nessa área, nasci naquela madrugada outros mares, outros ares. Ela me ensinou a ludocópula. Keyla me arrancou o cabaço existencial.
Titia tossiu no quarto. Fechei o chuveiro e me enrolei na toalha. Antes de ir ter com ela, vesti uma bermuda.
_Bom-dia! Tudo legal com a senhora? - disse, abrindo a janela.
_Olá – respondeu-me com um sorriso meigo, que deixava ver as gengivas encarnadas. - Ué, não vai pro serviço não? - estranhou, vendo-me naquele traje.
_Não tia. Hoje, não. Aliás, acho que vou até pedir as contas. E não só no emprego. Estou me demitindo de tudo que é chato. - Abaixei-me e beijei-lhe a face. Percebi que ela havia sentido minha euforia. - Vamos tomar café? Eu trouxe pão fresco. Peraí. - Saí e voltei empurrando a cadeira de rodas, ela já estava sentada na beira da cama.
_Viu o passarinho verde, é? - sorriu-me de novo. O seu humor também estava melhor que nos últimos dias, quando andara meio doente. Parecia-me bem-disposta e alegre.
_Passarinha, tia, passarinha. Mas não verde. Uma passarinha furta-cor. Policromática... - Ao dizer isso, todas as emoções e sensações vividas com Keyla, não apenas as mais recentes, mas todas desde que nos conhecêramos, reascenderam-se na minha alma e um poema foi nascendo em minha cabeça: Vuvalve – suave ave divina, vossa vulva vulcânica voa...
_Ei, acorda, menino – titia estalou os dedos ossudos diante de mim. - Meu Deus, olha só. Tá apaixonado, é, meu filho?
Titia havia me criado e me conhecia bem. Afaguei sua cabecinha branca e tive vontade de chorar, não sei porquê. Mas não chorei. Abracei-a demoradamente e acomodei seu quadril macilento na cadeira.
_Quer tomar banho primeiro, antes do café?
Ela disse que estava com fome, queria o café.
_Eu trouxe uma surpresinha pra senhora – falei quando chegamos á cozinha. - Olha aqui – mostrei-lhe o pacote com o doce.
_Ah querido, eu te amo – disse ela, mesmo antes de ver o que continha o embrulho. E, ao abri-lo, exultou: _Deus que te ilumine! Obrigada! Bendita a moça que casar com você. E que não demore pra isso acontecer, hem! - Ajeitou o papel no colo e me pediu:
_Quero comer no sol. Estou tão feliz hoje! Me leva pra fora.
Empurrei a cadeira até o jardim e, antes de arrastar o banquinho de madeira até ela, ouvi o telefone. Era Keyla.
_Que bom te encontrar em casa. Não foi trabalhar, né? Eu já podia imaginar. Olha, me espera, que eu vou almoçar aí, pode? - disse ela, num misto de afirmação e pergunta, e rapidamente, pois, como eu, também não gostava de conversas longas ao telefone.
_Vou pedir à sua tia você em casamento. Te amo. Tchau. - despediu-se de novo, laconicamente.
Corri para o quintal, jubiloso tal qual titia ao ganhar seu doce preferido.
_Tia, tia!
Ela não respondeu. Aproximei-me e, por trás, toquei seus ombros. Gelados. Virei a cadeira de rodas e ergui seu rosto, que pendia, meio oblíquo, afundado nos peitos murchos.
_Tia, pelo amor de Deus!... Agora não, tita... Tomei-a nos braços. Perambulei com ela pelo jardim, chorando, estarrecido. - Minha noiva vem pra almoçar, tia; ela quer te conhecer... Tia... Abaixei-me e coloquei o corpo na grama. Sentei-me ao lado e fiquei observando a marcha de lavapés que se aproximava carregando uma abelha. Vi o doce no chão, ainda inteiro, intacto. Ulhei para titia, para seu rosto engelhado e seu corpinho esquálido por dentro da camisola cor-de-rosa. Levantei sua cabeça e aconcheguei-a no meu colo. Percebi que a vespa ainda vivia e empregava as últimas energias para se libertar. Pensei no escorpião vermelho tatuado na bunda de Keyla. Dei um tapa e acabei com o embate desigual. Despreguei alguns cadaverezinhos da formiga da palma da mão e fiquei acariciando as rugas daquela mulher que morrera sem morder seu sonho.

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