10 junho 2008

AMANHÃ TALVEZ - SÉRGIO VAZ

Eram mais ou menos vinte e três horas quando Asdrúbal chegou em casa. Levemente embriagado, cumprimentou a mulher com um breve aceno de cabeça. O suficiente para a patroa desferir todo o vocabulário de palavrão que conhecia. Palavrões cabeludos e de baixíssimo calão, capaz de corar até a Dercy Gonçalves.

A mulher o lembrou que todo dia ele saia às dezoito horas do escritório e só chegava naquele horário, e quase sempre com a cara cheia. Ela lhe pediu o dinheiro para as despesas do dia seguinte, rogou-lhe duas ou três pragas, e foi para o quarto dormir.
Preocupado pra caramba, Asdrúbal foi para a sala assistir televisão. Já não ligava para os comentários injustos e maldosos da dona da pensão. Pensou no que mais ela poderia querer, se não faltava nada em casa.
Na sala abraçou seu único amigo de verdade: o controle remoto. Quem sabe assistir um programa até que a jabiraca dormisse e ele pudesse descansar em sua cama, para refletir sobre o que realmente interessava: o clássico de domingo entre Palmeiras e Corinhthias.
Lá pelas tantas escura um barulho atrás da poltrona em que está dormindo e achando que é a mulher pergunta o que ela quer. Olhou em volta da sala e não viu ninguém. O Zum zum zum não parava.
Cabreiro, levantou-se e perguntou:
-Zéfa, é você? É você coisa mandada? Vá assustar a véia, sua desgraçada.
Sentiu-se aliviado ao ofender a dita cuja. Em meio ao medo e curiosidade, achou que aquele era um bom momento para ofende-la.
Mas do silêncio da sala escura refletido apenas pela claridade da tv surge um cara com uma voz rouca que lhe diz:
-Sou eu.
-Que porra é essa de “sou eu” , o quê está acontecendo aqui? Eu quem, que droga você faz aqui na minha casa? E deu um pulo assustado para trás. Pensou em assalto, mas traição não estava descartada. Gritou o nome da mulher e não obteve resposta.
Da escuridão surge um anjo barrigudo com duas asas tortas trajando uma camiseta regatas branca e vestindo uma calça moleton da adidas.
-Sou eu Asdrúbal, a morte.
Dizendo isso o anjo presenciou um dos desmaios mais suspeitos de toda a sua vida.
Recuperado do susto Asdrúbal levanta-se devagar e mira o anjo fixamente.
-Que papo bravo é esse de morte? Se liga que essas idéias tá meia furada.
-É, a morte, ou pensou que ia ficar pra semente? E riu discretamente.
O anjo agradeceu aos céus, adorava aquele emprego. O anjo se lembrou de quantas cabeças teve que pisar para chegar até ali, no cargo que ocupava. Ser Oficial de justiça do céu não era para qualquer um.
-Mas assim, de repente, sem avisar? Respondeu quase com uma súplica
-Pois é, seu Asdrúbal, a gente não costuma avisar com medo que as pessoas empreendam fuga, QSL? E riu baixinho novamente.
-Mas seu morte eu ainda sou muito novo, tenho tanta coisa pra fazer.
-Por exemplo?
-Ora tantas coisas... bom.. deixa eu ver... assim de bate pronto é meio difícil lembrar... bom...
-Viu, você não tem nada mais a fazer aqui na terra.
-Tanta gente ruim pra você lembrar e você vem justo na minha casa? Só nessa rua tem uns três ou quatro. Não que eu esteja caguetando... olha, eu sou um cara bom, eu não posso ir agora.
-Já ouviu falar de Gandhi? Não me parece que você é melhor do que ele.
- Nada contra esse Tal de Ghandi, ou de quem quer que seja... e tem outra coisa, eu tenho dois filhos para criar, quem vai cuidar deles se a Zéfa não trabalha?
- Asdrúbal, cuidar do jeito que você cuida, a vida cuida melhor. Todo mundo sabe que tem mulher que vale por dois.
- Mas nunca deixei que nada faltasse a eles. Nunca faltou caderno, brinquedo e camisa do corinthias. Esses moleques, os dois, nunca passaram necessidades.
- Faltou carinho. E quanto à Zéfa, ela já está acostumada com migalhas. Lembrou-lhe o anjo.
- Por quê você não leva um político bandido, um velho ou um mendigo, quem vai sentir falta? Como sempre, empurrou o compromisso para os outros.
- De certa forma você se encaixa nos três perfis, mas Isso não sou eu quem decide.
- Tanta gente sem caráter ... por quê você não leva a Zéfa? Acho que ela tá com câncer.
- Deixa de ser traíra, seu cagão! Grande bosta você é, acha que alguém vai sentir a sua falta? Você acha que fez alguma coisa para a humanidade? Você acha que tem amigos? Você devia se preocupar se vai ter alguém para segurar na alça do seu caixão.
O anjo tinha seus defeitos, mas trairagem não suportava nem a pau.
- Calma seu morte não falei por mal. Disse o pré-defunto, arrependido da mancada.
Mas o anjo ainda não tinha terminado, queria aproveitar a ocasião para um desabafo.
- É foda! Disse o anjo. E um trovão rompe à sala. - Ops!, perdão senhor. Mas continua o raciocínio.
- Pô, se queria viver, por quê não viveu? É sempre a mesma ladainha. É sempre a mesma história. Dorme dez hora por dia. Assiste quatro horas de televisão, sem contar aos domingos, e quando chega a hora de ir, quer negociar. To ficando mole mesmo.
Irritadíssimo o anjo continua com seu sermão, já pensando em futuras promoções.
- Vai morrer simmm! E vai morrer hoje! Faço questão de te levar. Vai nem que seja no colo.
Quase que num transe Asdrúbal não conseguia entender direito o que estava acontecendo. Na opinião de quem estava prestas a passear de caixão, o anjo já estava levando para o lado pessoal.
- Se tocar a mão em mim eu te mato. Reagiu o pobre do pré-presunto.
- Quem mata aqui sou eu. Enfatiza a morte, preocupado com a concorrência.
- Oh meu deus, me ajude. Suplica Asdrúbal, levando as mãos aos céus, apelando para a presidência.
-Ah, quer ajuda de deus agora?! Não quero te desanimar, mas ninguém da diretoria vai te escutar. E tem mais, o povo lá de cima ta de saco cheio de tanto ajudar quem não se ajuda.
O anjo tinha realmente levado para o lado pessoal. Ninguém o havia atendido quando suplicara por clemência há algumas centenas de anos atrás. Para quem não sabe, a vingança celestial é uma das mais mortais que existem.
Chegado a hora o anjo olha para o canditado à vaga de alma penada, e o fulmina com um olhar mortal ( é claro!) e ordena:
- Morre! Morre! Morre desgraçado! E essas palavras ecoam pela sala, e na cabeça de Asdrúbal que gira ao som psicodélico da morte.
Em meio a uma pequena névoa acompanhada de um tímido silêncio Asdrúbal acorda gritando e suando no sofá.
- Nãooooooooooooooooooooooooooooooo!
A mulher invade a sala e o desperta do pesadelo.
- Acorda seu merda! Bebe seu desgraçado! Bebe filho de uma égua, depois fica aí tendo estremiliques. Olha pra isso, chega está todo mijado!
Numa mistura de raiva e indignação a mulher o vê levantar com a cara mais esquisita do mundo.
- Que foi peste, até parece que viu a morte?
Lentamente Asdrúbal acorda, passa as mãos pelo corpo, belisca o braço e constata que tudo não passou de um sonho. Sim, ela vivo. Diante disso saiu pulando e gritando pela sala.
-Eu to vivo! Eu to vivo! Há há há há .
A mulher não entendendo nada, e ele dançando e cantando pela sala a música do Gonzaguinha..
- Viver, e não ter a vergonha de ser feliz...
Abraça e beija a mulher como há muito não fazia. Ofegante diz a ela o quanto ela é importante. O quanto a ama. O quanto ama os filhos. O quanto a tinha feito infeliz. Diz que daquela hora em diante tudo ia ser diferente. Diz coisas desconexas. E chora pelos cotovelos. Soluça. Implora perdão. A sala roda. A mulher roda. O sofá roda. A mulher grita. O coração roda. O coração pára. Asdrúbal cai no chão.
A mulher, entre lágrimas, ajoelha e o abraça como há muito não fazia.
- Acorda amor, não faz isso comigo não. Acorda amor da minha vida. Não me deixa sozinha aqui não. Acorda amor. Acorda.
Os meninos acordam e encontram a mãe com o pai, já morto, no colo, chorando, embalando como quem embala uma criança. Entre uma lágrima e um gemido de dor ela canta baixinho no ouvido do seu homem.
-Viver... e não ter a vergonha de ser feliz....

3 Comments:

QUEBRADA VIRTUAL said...

Muito bom, mas muito bom mesmo..

Unknown said...

😍😍😍👏👏👏👏👏👏👏 fabuloso, fantástico.... Logo, logo o Sarau Revolucionários Onetti's encena 😌😉

Unknown said...

😍😍😍👏👏👏👏👏👏👏 fabuloso, fantástico.... Logo, logo o Sarau Revolucionários Onetti's encena 😌😉