I
O baixinho, da camisa sete passou voando, fazendo poeira ao seu lado: - Passa a bola, Gilson... passa a bola, Gilson! O companheiro, da camisa nove vermelha vinha desde o meio de campo driblando seus marcadores, e parecia nem ouvir o que o outro gritava. – Passa a bola, Gilson... passa a bola, caralho! Dentro da meia-lua, o centro-avante moreno do time vermelho, baixou a cabeça e chutou. -Uuuuuuuuuh! foi o que se ouviu por todo o campo. A bola passara raspando no travessão da meta do outro time. A oportunidade de virar o jogo havia sido perdida ali. Gilson voltava para o campo de defesa, concentrado, o olhar na ponta da chuteira. O camisa sete passou do seu lado e xingou, baixinho: - Viado do caralho!
Com o apito final do juiz, a torcida, que até então, lotara os barrancos do lado do campo, começou a se dispersar. Crianças, velhos, homens e mulheres. Toda a gente da região estava ali. Gente muito boa e gente muito ruim. Os motores das motocicletas, que até então respeitaram a música do futebol, voltaram a berrar. Alguns ouviram tiros de comemoração. Aquele empate contra o time mais forte do festival, não era de todo ruim.
Gilson havia corrido para o vestiário para pegar as suas coisas tão logo o árbitro apontara para o meio de campo. Os seus companheiros, talvez com menos pressa, vinham conversando, ainda no calor do jogo. O técnico do time, Seu Antenor, os animava: - Vamos lá, meninada, num desanima não que semana que vem é a que vale, hein? O camisa três lamentava: ¬- Se aquele último chute do Gilson tivesse entrado, já pensou? O baixinho da camisa sete, vermelho, aparentando estar mais irritado do que dentro de campo, vociferou: - Se aquele porra do Gilson tivesse soltado a bola, eu tinha guardado pelo menos um! e apressou o passo. – Aê, Valdinho, se você jogasse tanto quanto fala, teria feito pelo menos dois., disse o negro da camisa dez, capitão do time. – O cara me deu o passe pro primeiro gol; fez o segundo e você ainda quer cornetar o cara? Na porta da entrada do vestiário, uma casinha de tijolos à vista, Valdinho pára e meio de soslaio fala pro seu capitão: ¬- Agora você vai ficar defendendo o Gilson... dá o cu pra ele também, Di!” E só não entra com tudo no vestiário porque o camisa nove, já de mochila nas costas, estava de saída e bloqueara o seu acesso: “Qual é a sua, Marivaldo, seu bosta? Tá com saudades da surra que eu te dei quando a gente era criança?”, e permaneceu parado na porta. As caras brancas dos outros nove homens do time contrastaram com o vermelho de suas camisas. Valdinho, mais branco do que os outros, disse, não sem certa dificuldade: “Do que você tá falando?”.
- Ué! Num tá lembrado, não? Estranho, dizem que é o cara que apanha quem nunca esquece! Você num jogou porra nenhuma e ainda ta aí, falando bosta pelos cotovelos... Tá mesmo é querendo levar outro cacete meu... A “turma do deixa disso” interveio: - Esquece isso, Gilson, o Valdinho fala demais, às vezes! Mas o esquentado camisa sete do time vermelho nem ouviu e já emendou: - Quem gosta de levar cacete, pau, rola, aqui, é você, seu viado do caralho! Pra quê? A resposta veio na lata: - Sou viado, mas você num güenta... e vou acabar com a sua macheza é agora, seu filho d’uma puta! Aí ninguém conseguia ouvir mais nada, foi uma gritaria, um empurra-empurra, um montoeiro de homem de camisa vermelha pra conseguir segurar o Gilson. O capitão do time, o dez, que até então estivera perto do Valdinho, virou as costas, tão logo a baixaria começou, e se picou dali. Gilson preparou uma cabeçada com endereço tão certo, que a sorte do Marivaldo foi que Tião Gordo, camisa quatro, e o homem mais forte do time, conseguiu puxá-lo na hora em que a cabeçada foi dada. Senão, era um desfalque certo pro próximo jogo da final. O camisa sete, o ponta direita; de nariz quebrado. No meio do qüiproquó, que já durara mais do que devia, chegou correndo o Seu Damião, que de jogar, só jogava mesmo era dominó; mas que era o torcedor número um e roupeiro do time, gritando com todo mundo: ¬-Cês tão louco, seus filho d’uma rapariga? Que é? Vocês querem se quebrar? Querem se matar? Então, no próximo final de semana num tem nem jogo, né? Já era o festival... A voz da razão acabou, na hora, com a confusão feita pelos ânimos exaltados. Todos caíram em si. Gilson e Marivaldo, inclusive. O amor àquela camisa vermelha era maior do que o ódio que um sentia pelo outro. Uns foram tirando o Valdinho de cena. Outros ficaram com o Gilson. Seu Damião, passou a mão na cabeça do camisa nove artilheiro e falou: -Vai pra casa tomar um banho, garoto, relaxa! Se o time num perdeu hoje foi por sua causa... vai lá, toma um banho e descansa, vai? Ainda com o coração acelerado, o moreno agradeceu, olhando pra baixo: -Brigado, Seu Damião, brigado! E saiu andando descendo a rua, caminho de casa.
Ao virar a esquina da rua onde morava, avistou Diego encostado num poste, o capitão do time, já de roupa trocada e banho tomado, parecia que o estava esperando. – Qualé, Di? Que que você quer?, inquiriu Gilson, parando em frente ao poste. Ainda olhava para baixo. Como o outro permaneceu calado, olhando-o, decidiu continuar a andar: - Porra, Di, o cara acabou com a minha raça, na frente do time inteiro, rolou o maior barraco lá, tinha uma pá de cara à minha volta, e você num fez merda nenhuma? Qual é, Di? Vai que cola um louco lá, que, só pra variar, num gosta de mim, se junta com o filho-da-puta do Marivaldo e decide me socar, ou me subir lá mesmo? Você num ia fazer nada, Di... Diego que vinha andando atrás dele, em silêncio, até então, murmurou um começo de frase, mas a decepção do outro só aumentou: -Você virou as costas e saiu andando, Di... que merda! Você me deixou lá, sozinho, no meio daquele puta barraco horroroso! A resposta de Diego veio quase sem voz: - Mas, precisava, Gilson?
- Precisava, ô, se precisava! E aí, parece que a indignação aumentou: - Num fode, Di, o cara fala mal de mim pelos cotovelos, acaba comigo, você num faz porra nenhuma e ainda me pergunta se eu precisava me defender? Qual é, Di? Se eu num me defendo quem é que vai me defender? Você? Que me deixou lá, sozinho? Que virou as costas pra mim? E ainda mais nervoso, parecendo não acreditar no que tinha ouvido: - Ái, meu Santo Amaro, só me faltava essa! Ou você preferia que eu num fizesse nada, o cara me esculacha depois do puta jogo que eu fiz e eu ainda tenho que dizer amém pra ele? Vai pra puta-que-o-pariu, Di!, gritou. Diego seguia Gilson, com passos tímidos, meio de lado, os olhos percorrendo toda a vizinhança: - Num precisa gritar, Gilson, eu ia... nem terminou a frase, Gilson se virou e falando bem baixinho, quase sussurrando, falou: - Cê ia...cê ia o quê? Qual é Di, tá com vergonha de mim? Então por que cargas d’água cê veio até aqui?, e esperou o contraditório do outro. Que não veio. - Ah! Você estava com vergonha, né? Ou era medo? Medo que eu me virasse no meio da confusão e dissesse pra quem quisesse ouvir que foi na minha cama que você passou a noite de ontem? Diego, estacou. De negro, ficou branco. Gilson, seguiu andando e nem se virou pra falar: - Sai fora, Di, eu não quero mais saber de você não... você me decepcionou demais hoje! Sai fora, vai!, e entrou em casa, batendo a porta.
II
Era fácil. Subindo pelo telhado do açougue, sairiam nos fundos da loja de roupas. Daí, era só pular e forçar a portinha, fechada só com um frágil trinco de metal. Os quatro garotos faziam aquilo muito mais pra ter o que fazer à noite, do que pelo dinheiro. Roupas íntimas. Gordinho e Nenê se acabavam de rir com cuecas enfiadas na cabeça. Gilson, enchia um saco plástico preto com calcinhas e sutiãs; e sorria, feliz. A pinga que haviam tomado antes de entrar, pra espantar o frio e a fome e pra criar coragem, tornava a cena muito mais engraçada. Os três se divertiam naquele lugar proibido para eles durante o expediente. Gente suja, como eles, não podia entrar ali. Nikimba observava, de longe. Não podia se ocupar com aquelas criancices. Ocupava-se com as portas da loja. – Vamos sair fora, já deu... já deu!, ordenou o maior dos meninos. Uma madrugada silenciosa e quase tão inocente quanto eles dava guarida para os quatro garotos carregando um saco preto. No comércio local daquele bairro afastado, encontrar um carro de polícia era muito azar. Apressaram-se. - A arte do malandro num é roubar! A arte do malandro é nunca dar sorte pro azar, dizia Nikimba. 13 anos de sabedoria.
Seguros em seu campinho-esconderijo-dormitório os meninos, meio bêbados ainda, divertiam-se em volta de uma fogueira agonizante. Vestiam pijamas, ceroulas e cuecas na cabeça. Gilson, que havia se afastado do grupo, volta, meio cambaleante. Iluminado pela fraca luz, reaparece de sutiã e calcinha brancos. Uma anágua branca na cabeça. –Lá vem a noiva... tooooda de braaanco...” Nikimba, se levanta e lhe dá um soco na cara, derrubando-o. – Você é bicha, caralho? Nenê e Gordinho que se preparavam para rir da noiva do campinho... assustaram-se e se fecharam. O menino se levanta rapidamente e vai se sentar num tijolinho, afastado do grupo. Nikimba vai se sentar num lugar escuro, de costas para os meninos. Gilson chora em silêncio. A cabeça baixa. Apenas o sussurro das brasas da fogueira se faz ouvir. Limpa o sangue do nariz e não consegue entender o porquê daquele soco. Nikimba não gostava dele? Não era com ele que fazia coisas à noite, depois que os outros dormiam? Um calor infernal toma conta do seu corpo. Parece que um rastilho de pólvora vinha da fogueira até o tijolo onde estava sentado. Abrasava por dentro. Não podia despejar toda sua raiva no Nikimba. Não no Nikimba... gostava dele! O cheiro de fumaça misturado com o de cola de sapateiro e pinga o enojara. Levanta-se sem olhar para ninguém. Agarra o saco preto, cheio de calcinhas e sutiãs e sai andando. A cabeça ainda rodava e fervia. Explicação não precisava. Gilson não voltaria mais ali... e pra casa é que não iria, não àquela hora. O padrasto o espancaria... só pra variar.
As pessoas que entravam naquele ônibus, o primeiro da linha, madrugada alta, deparavam-se com um saco preto no meio do corredor. No banco ao lado, um monte de peças íntimas femininas forravam o banco. Peças novas, ainda com etiqueta. Perambulando pelo corredor, uma criança, moreninha, de cabelinho curto e aspecto frágil, confundia suas cabeças. Seria um menino ou uma menina aquela figura que desfilava pelo ônibus vestindo uma calcinha e um sutiã brancos, por cima da roupa? A criança, nitidamente embriagada, passeava pelo corredor do ônibus fazendo poses de modelo. Algumas pessoas preferiam fazer de conta que nada estava acontecendo por ali. Viravam o rosto. Quando Gilson percebia que alguém estava olhando, parava no meio, mãos na cintura, cabeça levemente inclinada. E sorria. Aquele sorriso bêbado dado por uma criança, fustigava os que o recebiam. Os passageiros mais engraçadinhos ou mais mal-intencionados – todos homens - gracejavam: - Olha que avião, na passarela! Parece a Luiza Brunet! Alguns riam. A criança ria grande e aumentava a dose de empolgação nos trejeitos. Já no final da “passarela”, uma senhora, de cabelos em coque, chamou Gilson para perto de si. ¬– Pelo amor de Deus, minha filha, pega suas coisas e vai pra casa! Num fica andando assim por aí, não! Tem muito animal por aí que pode fazer mal a você... O menino deu uma rodada, daquelas que as modelos dão no final da passarela, e, virando a cabeça para trás perguntou: - O que foi que a senhora disse, Dona?, e arrumou o sutiã. A mulher tentou se explicar: ¬¬- Você já tá ficando mocinha, minha filha, se ficar por aí sozinha, desse jeito que você ta, pode vir um homem mau e fazer sabe lá Deus o que, com você! Pega as suas coisas e vai pra casa, vai, minha filha? As mulheres que estavam no banco ao lado concordaram, balançando a cabeça e balbuciando alguma coisa. Gilson jogou a cabeça pra trás e deu uma sonora gargalhada. Pegou suas coisas, tirou a calcinha e o sutiã, e desceu; tão logo o ônibus parou em algum ponto. - Mocinha. Quer dizer que agora eu tô ficando mocinha?, e riu.
III
Naquela noite estava se achando. Era a noite de estréia da camisa que vestia. Tecido preto. Colado e transparente. A costureira do bairro demorara quase um mês pra fazer. Hoje, a noite seria sua. É verdade que estava magoado; mas, sabia melhor do que ninguém deixar as tristezas na ponta do salto. Assim, pisava nelas. Seu peito andava num téc-téc todo esquisito, ultimamente. O que estava acontecendo com ele? A mágoa sabia reconhecer. Era sua velha companheira. Mas, quando pensava em Diego, havia algo ali dentro que nunca tinha sentido antes. Será que estava amando aquele filho-da-puta? - Delete, delete, delete, esquece isso, Gilson!, falou pra si mesmo. Essa noite seria sua. Só sua. E estava aí... o que rolar, rolou.
¬- Bichas burras... nós somos duas antas! Fica aí, falando mais do que a Hebe e, depois, perde o ponto de descer do ônibus! Agora vamos ter que andar quilômetros pra chegar lá... e esse sapato tá me apertando tanto, que daqui a pouco, as minhas bolas vão parar no pescoço! Ninguém merece!, reclamava Rebeca, nome de batismo, Reginaldo Cristiano de Freitas. Parceiro de baladas de Gilson. – Eu falei que era melhor a gente ter ido lá na People? Pelo menos era mais perto... e lá a gente conhece todo mundo! Gilson que andava resoluto, dois passos à frente de Rebeca, nem se virou pra retrucar: - Evolui, Rebeca, evolui! Hoje a noite é especial... Deus me livre passar mais uma noite, lá, com aquela gente feia! E aperta o passo, que a gente já tá quase chegando!
Na frente da boate, um amontoado de gente. E não poderia ser diferente. Aquela era a boate da moda. Os dois entraram na fila. –Menina, você viu aquele gostosão da novela?Acabou de entrar na casa! , quase gritou Rebeca, sem conseguir disfarçar a empolgação. Alguns rostos se viraram para eles. Num meio sussurro, pediu: - Gilson, eu tenho que entrar nessa balada de qualquer jeito! Já pensou, depois de um esbarrão, por acaso, a minha estória de Cinderela começando? Vamos, Gilson, vamos entrar, que eu quero ter um filho daquele homem! Parecia que tudo que era gente moderna estava ali. Artistas, gente do mundo da moda, famosos... – Quanta gente com cara de coisa importada, né, Gilson? , sintetizou Rebeca. Na porta, dando as boas-vindas, estava a drag-queen mais badalada da cidade. Scarlet Montserrat. Ela e o cabeleireiro preferido dos artistas estavam casados, há 3 meses. E a casa fervia...
- A casa já está cheia, querido, tem uma lista de espera de duas horas!, disse a drag, olhando pros lados, na hora em que Gilson e Rebeca estavam pra entrar. – Agora, não dá pra vocês dois entrarem... Scarlet dançava, ao som da batida que vinha da pista e atravessava as grossas portas de madeira. – Ah! É a nossa primeira vez aqui e somos só nós dois... argumentou Gilson, tentando convencer a drag. – É! A gente fica bem quietinha e promete deixar alguns homens bonitos pras outras!, Rebeca tentou ajudar. A porteira, com um vestido de noiva estilizado, peruca amarela à la Marylin Monroe, e pernas de fora, nem olhava pra eles. Sorria. Dançava. E, de vez em quando acenava para alguém que passava pela frente da boate e gritava seu nome. Estava no auge da fama e não estava nem aí pra eles. – Olha, se vocês quiserem, queridos, podem estar esperando... como eu falei a casa tá bombando hoje! , e deu licença para um casal entrar. Rebeca abriu meio metro de boca e olhou para o amigo, pasma. Gilson não acreditava no que acabara de ver. A produção de um mês inteiro não podia acabar daquela forma, nas mãos daquela drag-queen metida. – Mas e esse casal que acabou de entrar?, perguntou. A drag, ainda sem fixar os olhos neles, respondeu, no meio de um passo de dança: - Eles já estavam na casa, saíram pra pegar alguma coisa no carro e estão voltando... já falei: se quiser, espere. Gilson suava nervoso. Sua camisa preta-colante-transparente, já estava molhada, grudando no corpo. – Olha Scarlet, eu conheço você há muito tempo, e quase num tô acreditando no que tô vendo! Isso que você está fazendo é discriminação... A outra perdeu o passo da dança e de rabo de olho respondeu: - Olha, se você está achando ruim, pode ir embora lá pra não sei-de-onde-você-veio, que, aliás era o que você deveria ter feito desde a primeira vez em que eu te falei que a casa estava cheia, queridinha! Essa balada, não é pra todo mundo! Rebeca, sabendo que o errado estava a um passo de ser feito, pegou o amigo pelo braço e falou com uma calma dissimulada: - Gilson, vamos embora, vamos? Deixa isso pra lá, vamos embora! Mas ele parecia nem ouvir. Chegou perto da drag, que já tinha lhe dado as costas e falou alto: - Então, quer dizer que, agora, que você largou o michê, e num tem mais que pegar o Jardim Ângela lotado, pra voltar pra casa, fica aqui, de pavão, querendo ser mais do que todo mundo, Josafá? Silêncio. - Hein Jô-sa-fá? Repetiu, encarando a drag, que conhecia desde os tempos em que fazia programa na região da República. Scarlet Montserrat, nome de batismo, Josafá Augusto Ferreira de Jesus, a drag-queen mais famosa da cidade, ex-michê pobrinho, perdeu o passo, se virou para Gilson com a cara mais amarela do mundo e fuzilando-o com o olhar, cochichou em seu ouvido, agarrando-o pela camisa: - Escuta aqui, sua bicha invejosa, eu não tenho nem idéia do que você está falando, nem de que buraco você saiu, mas aqui, no luxo, quem escolhe quem entra e quem não entra, sou eu! E na minha casa, gente feia e barraqueira, que nem você e seu comparsa, aí, nunca vão entrar... e gritou: - Seguranças, vocês podem tirar esse mocinho daqui? Ele está me ameaçando... Rebeca agarrou Gilson pelo braço. Não queria nem ver a cara dos seguranças daquele lugar. Na verdade, nunca mais queria ver aquele lugar. Já ouvira coisas demais pra uma noite só. Não precisava daquilo. Gilson se deixou arrastar, mas sem deixar de encarar Josafá, que continuava a agir como se nada tivesse acontecido ali. O sorriso mais falso do mundo na boca.
Dobraram a rua e Gilson, pediu à Rebeca: ¬¬- Rebeca, pega um táxi naquele ponto e me espera, aqui, na esquina, vamos pra People. Eu deixei cair uma coisa, na fila da boate... vou lá buscar e já volto. Rebeca, que já estava cansada de tudo aquilo, obedecera, embora soubesse que ali tinha coisa. Gilson voltou. Fez o caminho de volta à boate. Impávido. Scarlet continuava com o mesmo teatro. Nojenta. A fila já diminuíra, mas aquela gente bonita continuava entrando na casa. ¬– A casa está lotada, né?. Gilson chegou por trás, pelo lado de fora da fila. Scarlet era toda dancinhas e sorrisos. ¬– Scarlet, maravilhosa? A drag noivinha, toda de branco virou-se pra ver quem lhe chamava. Caiu, com o nariz quebrado, sem conseguir ver o que lhe havia derrubado. Gilson acertara-lhe uma cabeçada com toda a raiva do mundo e já corria em direção ao táxi. Todos na fila correram para acolher Scarlet Montserrat, a noiva do vestido branco e vermelho, cor de sangue.
IV
Parecia que o locutor do rádio gritava em seus ouvidos. Acorda! Acorda! Acorda! As portas da casa eram um só estrondo. Acorda! Acorda! Acorda! As panelas da cozinha retumbavam em uníssono. Acorda! Acorda! Acorda! Era sua mãe. Devia estar pensando que havia algum homem ali, com ele. Agora, que o padrasto torrava no inferno, qualquer desconfiança de que Gilson não estava dormindo sozinho em seu quarto, terminava assim. Ontem, era a mão pesada do padrasto na cara, hoje, era assim, bateção de portas e panelas. Saindo do quarto, onde passara a noite, sozinho, Gilson dá a fala habitual, de quase toda manhã de sábado: - Que é isso, mãe, pelamor de Deus?, dirigindo-se para a cozinha. A mãe se vira para a pia e fala pra dentro, mas com a certeza de ser ouvida: - Cê ainda tem coragem de falar de Deus, Gilson? Cê vive se enfiando com hômi, aí no seu quarto... o filho retruca: - Que hômi, mãe? Que hômi, o quê? Durmi sozinho essa noite!, a mãe de Gilson, que se tornara evangélica após a morte do companheiro, contra-argumenta, cheia de autoridade: Cê ainda acha que pode falar de Deus, Gilson?, e se vira, apontando o bule de café, avisando o filho de que havia acabado de passar um cafézinho para ele. Vai em direção ao quarto, com a serenidade dos que se crêem livres de pecado. Gilson enche uma xícara e vai atrás dela: - Mãe, eu sou tão filho de Deus, quanto a senhora, quanto o pastor da sua igreja e quanto o cachorro que tá passando aqui na frente de casa agora... Baaam! A última batida de porta. A mãe se tranca no quarto, e de lá continua a ladainha: - Jesus está voltando meu filho... e eu, sinto muito de saber que cê vai ser condenado pra sempre no fogo do inferno! Como sempre fazia, o filho amaldiçoado ainda tem um impulso de falar. Encosta a boca na porta do quarto da mãe e desabafa: - Crente é foda! Faz o diabo a quatro na vida e depois, quando fica velho, entra pra igreja, senta em cima do rabo e fica apontando pro rabo dos outros! E vai dizer que tá errado? “Você vai queimar no fogo do inferno...” e já saindo de casa, diz pra si mesmo: - Ái, meu Santo Amaro, me dá paciência, pelamor de Deus! Antes a mãe fazia tudo que o padrasto mandava. Agora, quem mandava naquela casa era o pastor da igreja. – Vai ser submissa assim, lá na casa do chapéu!, dizia Gilson, sobre sua mãe, pra qualquer cristão que tivesse interesse em ouvir. E Baaaam! Batia a porta ao sair. E assim começava quase toda manhã de sábado naquela casa.
No caminho da feira de sábado, que era o lugar onde tomava o seu café da manhã, Gilson passava em frente ao bar do Bahia, que era o ponto de encontro do pessoal do futebol. Quase todo o time vermelho estava lá. Seu Damião, Diego, Tião Gordo. O centro-avante do time cumprimentou de longe, e ouviu, de dentro do bar: - É amanhã, hein, Gilson? Vai marcar pelo menos um golzinho pra mim, num vai?, era Seu Damião, torcedor fanático do time vermelho e admirador do futebol do moreno. Quando Gilson, já se afastava do boteco, avistou Marivaldo. Devia estar indo pro boteco do Bahia encontrar o pessoal, mas vinha em sua direção. - Rota de colisão! Rota de colisão!, ecoava em sua cabeça, como nos filmes de ficção. Atravessou para o outro lado da calçada. Não queria mais ninguém enchendo o seu saco. Ainda estava de barriga vazia e já havia gasto boa parte da cota diária de paciência com a mãe. E tinha um dia inteiro pela frente. ¬¬- Tá com pressa, Gilson? , disse a indesejada figura, atravessando a rua. Rota de colisão! Rota de colisão! Bloqueou a passagem: - O que cê quer, Marivaldo? To indo na feira..., Gilson deu um drible no brigão e seguiu andando. O outro, não satisfeito com a resposta, nem com o drible que tomara, correu e bloqueou a passagem de novo: - Ta indo na feira? Que foi? Acabou o seu estoque de mandioca? Novo drible e a paciência se esgotava: - Marivaldo, vai encher o saco de outro, vai? Que hoje eu não tô podendo! Marivaldo segurou Gilson pelo braço, e em tom de ameaça, quase que cuspiu: - Escuta aqui, seu viado, filho-da-puta, eu num vô esquecer o que aconteceu naquele dia do jogo, não viu? Gilson virou o rosto de lado e já ia esboçar um sorriso de desdém. A raiva do outro crescia: - E eu, se fosse você, tratava de ter mais cuidado quando andar por aí de noite que tem uma pá de gente que num tá gostando nada da sua valentia, e que tá louquinho pra subí seu gáis... Uma mão negra soltou o braço de Gilson. Era Diego. O capitão do time acabou com aquela discussão e chamou o raivoso camisa sete pra uma conversa, do outro lado da rua. Gilson, ficou paralisado, observando-os sem ouvir uma palavra do que diziam. Diego com o dedo em riste. Marivaldo de cabeça baixa. Vermelho, os olhos pegando fogo. Parecia que ia explodir. Não durou nem dois minuto a cena. Diego voltou pro lado de Gilson, dizendo: ¬- Esse daí num vai te incomodar nunca mais! O outro, antes de subir a rua, em direção ao bar, deu uma olhada, de canto de olho, para os dois. Baixou a cabeça e começou a andar. Gilson teria companhia para o seu café da manhã na feira. O peito batucava esquisito.
V
Passaram a tarde toda juntos. As pazes. De noite, arrumaram-se e foram para a festa de aniversário da Associação dos amigos do bairro. A Casa cheia. De gente muito boa e de gente muito ruim. Foram juntos. Ficaram juntos. Na festa, algumas pessoas conhecidas, fizeram de conta que nem os viam. Como se desconhecidos fossem. Já esperavam por isso. Gilson já estava era acostumado com isso. Rebeca e alguns amigos de Diego, do movimento social do bairro, curtiam junto com eles. Fizeram uma grande roda, no meio do salão. Fora daquela roda, cara feia era mato. Mas, estavam juntos. E bebiam. E conversavam. E davam risada. E dançavam. E dançavam. E dançavam até quase não poder. Tontura boa. Mas, havia, por ali, muita gente ruim. No auge da felicidade. Umas tantas da madrugada. Resolveram fazer um abraço coletivo. Gilson e Diego se um selinho inocente. Como virou moda entre pessoas famosas. Acontece, que eles não eram gente famosa. Coisa feia dois homens se beijando! Gente Feia é o que eram.
A música nem parou quando jogaram Rebeca no chão. Nem quando empurraram mais uns três, quatro, antes de arrastarem Diego e Gilson pra fora do baile. Três homens. Zoínho, Da lua e Marcelo, guindaram os dois para a rua. Três armas pra fora da calça. Duas delas apontadas para o rosto de Gilson. Outra pra cabeça de Diego. – Cês são bicha, caráio? Gilson já ouvira aquela frase em algum lugar. Pra Diego era a primeira vez. Derrubaram os dois no chão e começaram a chutar e a xingar: - Seus viado, filho-da-puta! Vâmu subí o gáis de vocês. Chutaram mais e apontaram as armas.
Alguém tinha saído da sedinha, onde a música tocava alta, e chegou, despercebido, ao lado dos três homens que ainda estavam de pé. – Cês tão loco, caráio! Vão zerá o Gílsu e o Diego? No dia da festa da Sedinha? Aqui na frente de todo mundo? Era o Nikimba, dono do comércio paralelo local. Armas guardadas. Gilson e Diego de novo de pé. Zoínho ainda tentou argumentar: ¬- Tá certo, Nikimba, que ia ser o auê máximo zerar essas duas bicha, em dia de festa, aqui na frente da sedinha, mas essas bicha do caráio deram mó mi, lá, na festa, jogando a viadáge deles na cara de todo mundo... pô, Nikimba, cê num viu, não? Nikimba, nem respondeu. Mandou todo mundo sair andando. ¬¬– Zóio, cê fica! E você também, Gilson... Diego saiu andando, desconfiado, não estava disposto a deixar Gilson, sozinho com o cara mais sangue no olho de toda a cidade. Gilson tranqüilizou-o: ¬- Me espera na minha rua, Diego... vai indo que eu já vou! Descrente, Diego estacou. Nikimba se virou pra ele e gritou: - Cê num ouviu o que o cara falou, maluco? Vai... dá linha no seu pipa, doidão! Diego ainda demorou um pouco pra sair dali, mas a tranqüilidade nos olhos de Gilson o convenceu. Gilson sabia o que estava fazendo.
O chefe do crime de toda a Zona Sul da cidade, olhou para Zóinho e falou, baixinho: ¬- Aê, ladrão, esse maluco aí - e apontou para Gilson - é um dos cara, junto com o Finado Gordinho e com o Finado Nenê, que pagou tudo os veneno que eu paguei na rua, quando era muleque, cê num lembra das estória que eu já te contei, então! Os olhos pequenos do rapaz se abriram de um jeito que parecia impossível até então. – E você pode ter certeza, ladrão – continuou Nikimba – que assim como eu fiz com os filha-da-puta que mataram os dois, se alguém fizer alguma coisa pra esse cara aí... eu num vô descansá até mandá o arrombado pro inferno, tá ligado? Num interessa o que o maluco fáiz com a vida dele, Zóio, o Gílsu, assim como o Finado Gordinho e o Finado Nenê – que Deus os tenha em bom lugar - é um irmão de rua meu, maluco! Zoínho, que agora parecia um menino que foi pego fazendo besteira, já se preparava pra pedir desculpa, quando O Cara do bairro, ordenou, como um pai faria: - Vai pra casa, vai Zóio, num pega nada! E, passando a mão em sua cabeça, alertou: - Cê é um malandro de conceito, mano! Num é desses bico que fica por aí, dando sorte pro azar! Já pensou se eu num tivesse aqui? Ó o milho...
Zoínho pegara o caminho de volta pra casa. Gilson já se preparava para também pegar o seu. Nikimba pega em seu braço e olhando fundo nos seus olhos: - Pêra aí, que ainda num terminei, Gílsu. O moreno estava preocupado. Será que o Diego ainda vai estar me esperando, lá na rua? E amanhã ainda tem o jogo, caramba! Virou-se para o antigo companheiro de noites frias à toa. Nikimba tinha se tornado um homem enorme. A sua cara fechada e a sua fama davam medo em qualquer um. Menos em Gilson. – Olha, Gílsu, enquanto eu tiver por aqui, você pode ficar tranqüilo que malandro nenhum põe a mão em você. Eu quero te ver feliz, Gílsu e espero que o Diego possa te fazer feliz como eu não pude fazer, tá ligado? Agora, vai lá que o maluco tá te esperando... e vê se se cuida, firmeza? Amanhã eu te vejo lá no jogo... Gilson não pronunciou palavra. Seguiu correndo para casa. Ái meu Santo Amaro! Ainda tem o jogo! Agora, tinha que encontrar Diego... o jogo era só amanhã.
VI
Os barrancos ao lado do campo estavam lotados. Todo mundo do bairro queria ver a final do campeonato. Mas se alguém prestasse atenção no time vermelho perceberia que o camisa nove não estava lá no meio do campo. Nem o camisa dez. Gilson e Diego chegaram correndo, de uniforme e chuteiras, momentos antes do juiz dar o apito inicial. Quando se dirigiam para o campo, foram barrados pelo Seu Antenor, técnico dos vermelhos, que entrando na frente dos dois falou, meio sem jeito: - Hoje vocês vão ficar no banco... a rapaziada se reuniu ontem no Bahia e decidiu que, depois do que aconteceu no outro jogo, o melhor para o time é que vocês dois não começassem jogando... Os dois entenderam tudo. Na hora. Marivaldo armara tudo. Se olharam e continuaram a ouvir, pacientemente. ¬– Se a porca apertar e a gente tomar um gol, ou não marcar nenhum eu coloco vocês dois... mais tardar, na virada do segundo tempo. Gilson, que já estava com um tom de pele que combinava com a camisa do time, já ia dizendo alguma coisa, mas, Diego atalhou, segurando-o pelo ombro: - Ué, Seu Antenor, ontem eu tava lá, no Bahia, e ninguém veio falar nada comigo! Eu já sei que papo é esse de banco pra gente... quer saber? Isso é trairagem que o Valdinho armou e que o time inteiro abraçou... e sabe o que mais, Seu Antenor? Bota o diabo no banco e quando o time tiver tomando um chocolate do tamanho de um trem, o Senhor chama ele pra jogar! O velho negro, branco ficou. E Diego ainda tinha mais a dizer: - eu sempre achei o senhor um homem bom, Seu Antenor, e sempre te respeitei! Mas, depois dessa última, eu quero mais é que o senhor enfie todo o seu preconceito, junto com o time e o banco de reservas no rabo, seu Antenor, no rabo...e... E ia falar mais, mas Gilson puxou-o e falou em seu ouvido: - Já tá bom, Di, o velho já entendeu a nossa mensagem, agora vamos lá tomar uma cervejinha e assistir esse bando de perna-de-pau jogar bola!
O resultado do jogo? Bem naquele dia, a torcida da casa não gritou gol. Nenhuma vez. Em compensação, a pequena torcida do time contrário, comemorou três vezes. No meio do jogo, quem reparasse no técnico dos vermelhos, veria um senhor negro, quase vermelho, passando mãos desesperadas nos ralos cabelos e olhando, de quando em quando para o barranco apinhado de gente, como quem procura alguém. No caso, procurava dois “alguéns”. Que tomavam cerveja, de costas pro campo, junto com Seu Damião, que ao saber da decisão do time, pulara fora do grupo. Os três amigos estavam em outra.
Com o apito final, o campo ficou só. Quase vazio para a entrega do troféu e comemoração do time visitante. Gilson e Diego, caminho pra casa, ainda de uniforme, passaram por Marivaldo, que caminhava, inconsolável, para o vestiário. Dessa vez, não teve ninguém pra segurar Gilson, que gritou: - Ué! Cadê os gols Marivaldo? Eu pensei que era só o Diego e eu que ficaríamos de fora hoje... mas, pelo jeito, você também nuão jogou, né? E Diego emendou: - E não se esqueça do nosso segredinho, hein, Valdinho? Mais uma sua e ele vai sair estampado no jornal do Zé Povinho do bairro. O camisa sete, que poderia ter ganhado o jogo para os vermelhos, se competência tivesse, ao ouvir Diego, baixara ainda mais a cabeça e entrara correndo, envergonhado, no vestiário.
Gilson e Diego já desciam a ladeira em direção a suas casas, quando Gilson se vira para Diego e pergunta: - Di, mas, afinal de contas, o que foi que você disse pro Marivaldo aquele dia? Que segredinho é esse, que calou a boca do cristão? Diego, com um sorriso levado no rosto, contou: - É que eu falei que se eu ficasse sabendo que ele continuava te infernizando, ia contar pra todo o pessoal do bar do Bahia, da Associação e do bairro todo, que quando a gente era moleque fazia troca-troca lá atrás da Sedinha e que o Valdinho só gostava de ser a mãezinha na brincadeira! O Gilson botou a mão na boca: - o Marivaldo? Geente, que babado! Diego ainda brincou: ¬¬¬- Tá vendo, Gilson, quem mandou você nunca dar bola pra ele... e riu. O outro, deu um tapinha na sua bunda e riu também. Continuaram descendo a ladeira. Abraçados. Caminho de casa. Estavam juntos.
O baixinho, da camisa sete passou voando, fazendo poeira ao seu lado: - Passa a bola, Gilson... passa a bola, Gilson! O companheiro, da camisa nove vermelha vinha desde o meio de campo driblando seus marcadores, e parecia nem ouvir o que o outro gritava. – Passa a bola, Gilson... passa a bola, caralho! Dentro da meia-lua, o centro-avante moreno do time vermelho, baixou a cabeça e chutou. -Uuuuuuuuuh! foi o que se ouviu por todo o campo. A bola passara raspando no travessão da meta do outro time. A oportunidade de virar o jogo havia sido perdida ali. Gilson voltava para o campo de defesa, concentrado, o olhar na ponta da chuteira. O camisa sete passou do seu lado e xingou, baixinho: - Viado do caralho!
Com o apito final do juiz, a torcida, que até então, lotara os barrancos do lado do campo, começou a se dispersar. Crianças, velhos, homens e mulheres. Toda a gente da região estava ali. Gente muito boa e gente muito ruim. Os motores das motocicletas, que até então respeitaram a música do futebol, voltaram a berrar. Alguns ouviram tiros de comemoração. Aquele empate contra o time mais forte do festival, não era de todo ruim.
Gilson havia corrido para o vestiário para pegar as suas coisas tão logo o árbitro apontara para o meio de campo. Os seus companheiros, talvez com menos pressa, vinham conversando, ainda no calor do jogo. O técnico do time, Seu Antenor, os animava: - Vamos lá, meninada, num desanima não que semana que vem é a que vale, hein? O camisa três lamentava: ¬- Se aquele último chute do Gilson tivesse entrado, já pensou? O baixinho da camisa sete, vermelho, aparentando estar mais irritado do que dentro de campo, vociferou: - Se aquele porra do Gilson tivesse soltado a bola, eu tinha guardado pelo menos um! e apressou o passo. – Aê, Valdinho, se você jogasse tanto quanto fala, teria feito pelo menos dois., disse o negro da camisa dez, capitão do time. – O cara me deu o passe pro primeiro gol; fez o segundo e você ainda quer cornetar o cara? Na porta da entrada do vestiário, uma casinha de tijolos à vista, Valdinho pára e meio de soslaio fala pro seu capitão: ¬- Agora você vai ficar defendendo o Gilson... dá o cu pra ele também, Di!” E só não entra com tudo no vestiário porque o camisa nove, já de mochila nas costas, estava de saída e bloqueara o seu acesso: “Qual é a sua, Marivaldo, seu bosta? Tá com saudades da surra que eu te dei quando a gente era criança?”, e permaneceu parado na porta. As caras brancas dos outros nove homens do time contrastaram com o vermelho de suas camisas. Valdinho, mais branco do que os outros, disse, não sem certa dificuldade: “Do que você tá falando?”.
- Ué! Num tá lembrado, não? Estranho, dizem que é o cara que apanha quem nunca esquece! Você num jogou porra nenhuma e ainda ta aí, falando bosta pelos cotovelos... Tá mesmo é querendo levar outro cacete meu... A “turma do deixa disso” interveio: - Esquece isso, Gilson, o Valdinho fala demais, às vezes! Mas o esquentado camisa sete do time vermelho nem ouviu e já emendou: - Quem gosta de levar cacete, pau, rola, aqui, é você, seu viado do caralho! Pra quê? A resposta veio na lata: - Sou viado, mas você num güenta... e vou acabar com a sua macheza é agora, seu filho d’uma puta! Aí ninguém conseguia ouvir mais nada, foi uma gritaria, um empurra-empurra, um montoeiro de homem de camisa vermelha pra conseguir segurar o Gilson. O capitão do time, o dez, que até então estivera perto do Valdinho, virou as costas, tão logo a baixaria começou, e se picou dali. Gilson preparou uma cabeçada com endereço tão certo, que a sorte do Marivaldo foi que Tião Gordo, camisa quatro, e o homem mais forte do time, conseguiu puxá-lo na hora em que a cabeçada foi dada. Senão, era um desfalque certo pro próximo jogo da final. O camisa sete, o ponta direita; de nariz quebrado. No meio do qüiproquó, que já durara mais do que devia, chegou correndo o Seu Damião, que de jogar, só jogava mesmo era dominó; mas que era o torcedor número um e roupeiro do time, gritando com todo mundo: ¬-Cês tão louco, seus filho d’uma rapariga? Que é? Vocês querem se quebrar? Querem se matar? Então, no próximo final de semana num tem nem jogo, né? Já era o festival... A voz da razão acabou, na hora, com a confusão feita pelos ânimos exaltados. Todos caíram em si. Gilson e Marivaldo, inclusive. O amor àquela camisa vermelha era maior do que o ódio que um sentia pelo outro. Uns foram tirando o Valdinho de cena. Outros ficaram com o Gilson. Seu Damião, passou a mão na cabeça do camisa nove artilheiro e falou: -Vai pra casa tomar um banho, garoto, relaxa! Se o time num perdeu hoje foi por sua causa... vai lá, toma um banho e descansa, vai? Ainda com o coração acelerado, o moreno agradeceu, olhando pra baixo: -Brigado, Seu Damião, brigado! E saiu andando descendo a rua, caminho de casa.
Ao virar a esquina da rua onde morava, avistou Diego encostado num poste, o capitão do time, já de roupa trocada e banho tomado, parecia que o estava esperando. – Qualé, Di? Que que você quer?, inquiriu Gilson, parando em frente ao poste. Ainda olhava para baixo. Como o outro permaneceu calado, olhando-o, decidiu continuar a andar: - Porra, Di, o cara acabou com a minha raça, na frente do time inteiro, rolou o maior barraco lá, tinha uma pá de cara à minha volta, e você num fez merda nenhuma? Qual é, Di? Vai que cola um louco lá, que, só pra variar, num gosta de mim, se junta com o filho-da-puta do Marivaldo e decide me socar, ou me subir lá mesmo? Você num ia fazer nada, Di... Diego que vinha andando atrás dele, em silêncio, até então, murmurou um começo de frase, mas a decepção do outro só aumentou: -Você virou as costas e saiu andando, Di... que merda! Você me deixou lá, sozinho, no meio daquele puta barraco horroroso! A resposta de Diego veio quase sem voz: - Mas, precisava, Gilson?
- Precisava, ô, se precisava! E aí, parece que a indignação aumentou: - Num fode, Di, o cara fala mal de mim pelos cotovelos, acaba comigo, você num faz porra nenhuma e ainda me pergunta se eu precisava me defender? Qual é, Di? Se eu num me defendo quem é que vai me defender? Você? Que me deixou lá, sozinho? Que virou as costas pra mim? E ainda mais nervoso, parecendo não acreditar no que tinha ouvido: - Ái, meu Santo Amaro, só me faltava essa! Ou você preferia que eu num fizesse nada, o cara me esculacha depois do puta jogo que eu fiz e eu ainda tenho que dizer amém pra ele? Vai pra puta-que-o-pariu, Di!, gritou. Diego seguia Gilson, com passos tímidos, meio de lado, os olhos percorrendo toda a vizinhança: - Num precisa gritar, Gilson, eu ia... nem terminou a frase, Gilson se virou e falando bem baixinho, quase sussurrando, falou: - Cê ia...cê ia o quê? Qual é Di, tá com vergonha de mim? Então por que cargas d’água cê veio até aqui?, e esperou o contraditório do outro. Que não veio. - Ah! Você estava com vergonha, né? Ou era medo? Medo que eu me virasse no meio da confusão e dissesse pra quem quisesse ouvir que foi na minha cama que você passou a noite de ontem? Diego, estacou. De negro, ficou branco. Gilson, seguiu andando e nem se virou pra falar: - Sai fora, Di, eu não quero mais saber de você não... você me decepcionou demais hoje! Sai fora, vai!, e entrou em casa, batendo a porta.
II
Era fácil. Subindo pelo telhado do açougue, sairiam nos fundos da loja de roupas. Daí, era só pular e forçar a portinha, fechada só com um frágil trinco de metal. Os quatro garotos faziam aquilo muito mais pra ter o que fazer à noite, do que pelo dinheiro. Roupas íntimas. Gordinho e Nenê se acabavam de rir com cuecas enfiadas na cabeça. Gilson, enchia um saco plástico preto com calcinhas e sutiãs; e sorria, feliz. A pinga que haviam tomado antes de entrar, pra espantar o frio e a fome e pra criar coragem, tornava a cena muito mais engraçada. Os três se divertiam naquele lugar proibido para eles durante o expediente. Gente suja, como eles, não podia entrar ali. Nikimba observava, de longe. Não podia se ocupar com aquelas criancices. Ocupava-se com as portas da loja. – Vamos sair fora, já deu... já deu!, ordenou o maior dos meninos. Uma madrugada silenciosa e quase tão inocente quanto eles dava guarida para os quatro garotos carregando um saco preto. No comércio local daquele bairro afastado, encontrar um carro de polícia era muito azar. Apressaram-se. - A arte do malandro num é roubar! A arte do malandro é nunca dar sorte pro azar, dizia Nikimba. 13 anos de sabedoria.
Seguros em seu campinho-esconderijo-dormitório os meninos, meio bêbados ainda, divertiam-se em volta de uma fogueira agonizante. Vestiam pijamas, ceroulas e cuecas na cabeça. Gilson, que havia se afastado do grupo, volta, meio cambaleante. Iluminado pela fraca luz, reaparece de sutiã e calcinha brancos. Uma anágua branca na cabeça. –Lá vem a noiva... tooooda de braaanco...” Nikimba, se levanta e lhe dá um soco na cara, derrubando-o. – Você é bicha, caralho? Nenê e Gordinho que se preparavam para rir da noiva do campinho... assustaram-se e se fecharam. O menino se levanta rapidamente e vai se sentar num tijolinho, afastado do grupo. Nikimba vai se sentar num lugar escuro, de costas para os meninos. Gilson chora em silêncio. A cabeça baixa. Apenas o sussurro das brasas da fogueira se faz ouvir. Limpa o sangue do nariz e não consegue entender o porquê daquele soco. Nikimba não gostava dele? Não era com ele que fazia coisas à noite, depois que os outros dormiam? Um calor infernal toma conta do seu corpo. Parece que um rastilho de pólvora vinha da fogueira até o tijolo onde estava sentado. Abrasava por dentro. Não podia despejar toda sua raiva no Nikimba. Não no Nikimba... gostava dele! O cheiro de fumaça misturado com o de cola de sapateiro e pinga o enojara. Levanta-se sem olhar para ninguém. Agarra o saco preto, cheio de calcinhas e sutiãs e sai andando. A cabeça ainda rodava e fervia. Explicação não precisava. Gilson não voltaria mais ali... e pra casa é que não iria, não àquela hora. O padrasto o espancaria... só pra variar.
As pessoas que entravam naquele ônibus, o primeiro da linha, madrugada alta, deparavam-se com um saco preto no meio do corredor. No banco ao lado, um monte de peças íntimas femininas forravam o banco. Peças novas, ainda com etiqueta. Perambulando pelo corredor, uma criança, moreninha, de cabelinho curto e aspecto frágil, confundia suas cabeças. Seria um menino ou uma menina aquela figura que desfilava pelo ônibus vestindo uma calcinha e um sutiã brancos, por cima da roupa? A criança, nitidamente embriagada, passeava pelo corredor do ônibus fazendo poses de modelo. Algumas pessoas preferiam fazer de conta que nada estava acontecendo por ali. Viravam o rosto. Quando Gilson percebia que alguém estava olhando, parava no meio, mãos na cintura, cabeça levemente inclinada. E sorria. Aquele sorriso bêbado dado por uma criança, fustigava os que o recebiam. Os passageiros mais engraçadinhos ou mais mal-intencionados – todos homens - gracejavam: - Olha que avião, na passarela! Parece a Luiza Brunet! Alguns riam. A criança ria grande e aumentava a dose de empolgação nos trejeitos. Já no final da “passarela”, uma senhora, de cabelos em coque, chamou Gilson para perto de si. ¬– Pelo amor de Deus, minha filha, pega suas coisas e vai pra casa! Num fica andando assim por aí, não! Tem muito animal por aí que pode fazer mal a você... O menino deu uma rodada, daquelas que as modelos dão no final da passarela, e, virando a cabeça para trás perguntou: - O que foi que a senhora disse, Dona?, e arrumou o sutiã. A mulher tentou se explicar: ¬¬- Você já tá ficando mocinha, minha filha, se ficar por aí sozinha, desse jeito que você ta, pode vir um homem mau e fazer sabe lá Deus o que, com você! Pega as suas coisas e vai pra casa, vai, minha filha? As mulheres que estavam no banco ao lado concordaram, balançando a cabeça e balbuciando alguma coisa. Gilson jogou a cabeça pra trás e deu uma sonora gargalhada. Pegou suas coisas, tirou a calcinha e o sutiã, e desceu; tão logo o ônibus parou em algum ponto. - Mocinha. Quer dizer que agora eu tô ficando mocinha?, e riu.
III
Naquela noite estava se achando. Era a noite de estréia da camisa que vestia. Tecido preto. Colado e transparente. A costureira do bairro demorara quase um mês pra fazer. Hoje, a noite seria sua. É verdade que estava magoado; mas, sabia melhor do que ninguém deixar as tristezas na ponta do salto. Assim, pisava nelas. Seu peito andava num téc-téc todo esquisito, ultimamente. O que estava acontecendo com ele? A mágoa sabia reconhecer. Era sua velha companheira. Mas, quando pensava em Diego, havia algo ali dentro que nunca tinha sentido antes. Será que estava amando aquele filho-da-puta? - Delete, delete, delete, esquece isso, Gilson!, falou pra si mesmo. Essa noite seria sua. Só sua. E estava aí... o que rolar, rolou.
¬- Bichas burras... nós somos duas antas! Fica aí, falando mais do que a Hebe e, depois, perde o ponto de descer do ônibus! Agora vamos ter que andar quilômetros pra chegar lá... e esse sapato tá me apertando tanto, que daqui a pouco, as minhas bolas vão parar no pescoço! Ninguém merece!, reclamava Rebeca, nome de batismo, Reginaldo Cristiano de Freitas. Parceiro de baladas de Gilson. – Eu falei que era melhor a gente ter ido lá na People? Pelo menos era mais perto... e lá a gente conhece todo mundo! Gilson que andava resoluto, dois passos à frente de Rebeca, nem se virou pra retrucar: - Evolui, Rebeca, evolui! Hoje a noite é especial... Deus me livre passar mais uma noite, lá, com aquela gente feia! E aperta o passo, que a gente já tá quase chegando!
Na frente da boate, um amontoado de gente. E não poderia ser diferente. Aquela era a boate da moda. Os dois entraram na fila. –Menina, você viu aquele gostosão da novela?Acabou de entrar na casa! , quase gritou Rebeca, sem conseguir disfarçar a empolgação. Alguns rostos se viraram para eles. Num meio sussurro, pediu: - Gilson, eu tenho que entrar nessa balada de qualquer jeito! Já pensou, depois de um esbarrão, por acaso, a minha estória de Cinderela começando? Vamos, Gilson, vamos entrar, que eu quero ter um filho daquele homem! Parecia que tudo que era gente moderna estava ali. Artistas, gente do mundo da moda, famosos... – Quanta gente com cara de coisa importada, né, Gilson? , sintetizou Rebeca. Na porta, dando as boas-vindas, estava a drag-queen mais badalada da cidade. Scarlet Montserrat. Ela e o cabeleireiro preferido dos artistas estavam casados, há 3 meses. E a casa fervia...
- A casa já está cheia, querido, tem uma lista de espera de duas horas!, disse a drag, olhando pros lados, na hora em que Gilson e Rebeca estavam pra entrar. – Agora, não dá pra vocês dois entrarem... Scarlet dançava, ao som da batida que vinha da pista e atravessava as grossas portas de madeira. – Ah! É a nossa primeira vez aqui e somos só nós dois... argumentou Gilson, tentando convencer a drag. – É! A gente fica bem quietinha e promete deixar alguns homens bonitos pras outras!, Rebeca tentou ajudar. A porteira, com um vestido de noiva estilizado, peruca amarela à la Marylin Monroe, e pernas de fora, nem olhava pra eles. Sorria. Dançava. E, de vez em quando acenava para alguém que passava pela frente da boate e gritava seu nome. Estava no auge da fama e não estava nem aí pra eles. – Olha, se vocês quiserem, queridos, podem estar esperando... como eu falei a casa tá bombando hoje! , e deu licença para um casal entrar. Rebeca abriu meio metro de boca e olhou para o amigo, pasma. Gilson não acreditava no que acabara de ver. A produção de um mês inteiro não podia acabar daquela forma, nas mãos daquela drag-queen metida. – Mas e esse casal que acabou de entrar?, perguntou. A drag, ainda sem fixar os olhos neles, respondeu, no meio de um passo de dança: - Eles já estavam na casa, saíram pra pegar alguma coisa no carro e estão voltando... já falei: se quiser, espere. Gilson suava nervoso. Sua camisa preta-colante-transparente, já estava molhada, grudando no corpo. – Olha Scarlet, eu conheço você há muito tempo, e quase num tô acreditando no que tô vendo! Isso que você está fazendo é discriminação... A outra perdeu o passo da dança e de rabo de olho respondeu: - Olha, se você está achando ruim, pode ir embora lá pra não sei-de-onde-você-veio, que, aliás era o que você deveria ter feito desde a primeira vez em que eu te falei que a casa estava cheia, queridinha! Essa balada, não é pra todo mundo! Rebeca, sabendo que o errado estava a um passo de ser feito, pegou o amigo pelo braço e falou com uma calma dissimulada: - Gilson, vamos embora, vamos? Deixa isso pra lá, vamos embora! Mas ele parecia nem ouvir. Chegou perto da drag, que já tinha lhe dado as costas e falou alto: - Então, quer dizer que, agora, que você largou o michê, e num tem mais que pegar o Jardim Ângela lotado, pra voltar pra casa, fica aqui, de pavão, querendo ser mais do que todo mundo, Josafá? Silêncio. - Hein Jô-sa-fá? Repetiu, encarando a drag, que conhecia desde os tempos em que fazia programa na região da República. Scarlet Montserrat, nome de batismo, Josafá Augusto Ferreira de Jesus, a drag-queen mais famosa da cidade, ex-michê pobrinho, perdeu o passo, se virou para Gilson com a cara mais amarela do mundo e fuzilando-o com o olhar, cochichou em seu ouvido, agarrando-o pela camisa: - Escuta aqui, sua bicha invejosa, eu não tenho nem idéia do que você está falando, nem de que buraco você saiu, mas aqui, no luxo, quem escolhe quem entra e quem não entra, sou eu! E na minha casa, gente feia e barraqueira, que nem você e seu comparsa, aí, nunca vão entrar... e gritou: - Seguranças, vocês podem tirar esse mocinho daqui? Ele está me ameaçando... Rebeca agarrou Gilson pelo braço. Não queria nem ver a cara dos seguranças daquele lugar. Na verdade, nunca mais queria ver aquele lugar. Já ouvira coisas demais pra uma noite só. Não precisava daquilo. Gilson se deixou arrastar, mas sem deixar de encarar Josafá, que continuava a agir como se nada tivesse acontecido ali. O sorriso mais falso do mundo na boca.
Dobraram a rua e Gilson, pediu à Rebeca: ¬¬- Rebeca, pega um táxi naquele ponto e me espera, aqui, na esquina, vamos pra People. Eu deixei cair uma coisa, na fila da boate... vou lá buscar e já volto. Rebeca, que já estava cansada de tudo aquilo, obedecera, embora soubesse que ali tinha coisa. Gilson voltou. Fez o caminho de volta à boate. Impávido. Scarlet continuava com o mesmo teatro. Nojenta. A fila já diminuíra, mas aquela gente bonita continuava entrando na casa. ¬– A casa está lotada, né?. Gilson chegou por trás, pelo lado de fora da fila. Scarlet era toda dancinhas e sorrisos. ¬– Scarlet, maravilhosa? A drag noivinha, toda de branco virou-se pra ver quem lhe chamava. Caiu, com o nariz quebrado, sem conseguir ver o que lhe havia derrubado. Gilson acertara-lhe uma cabeçada com toda a raiva do mundo e já corria em direção ao táxi. Todos na fila correram para acolher Scarlet Montserrat, a noiva do vestido branco e vermelho, cor de sangue.
IV
Parecia que o locutor do rádio gritava em seus ouvidos. Acorda! Acorda! Acorda! As portas da casa eram um só estrondo. Acorda! Acorda! Acorda! As panelas da cozinha retumbavam em uníssono. Acorda! Acorda! Acorda! Era sua mãe. Devia estar pensando que havia algum homem ali, com ele. Agora, que o padrasto torrava no inferno, qualquer desconfiança de que Gilson não estava dormindo sozinho em seu quarto, terminava assim. Ontem, era a mão pesada do padrasto na cara, hoje, era assim, bateção de portas e panelas. Saindo do quarto, onde passara a noite, sozinho, Gilson dá a fala habitual, de quase toda manhã de sábado: - Que é isso, mãe, pelamor de Deus?, dirigindo-se para a cozinha. A mãe se vira para a pia e fala pra dentro, mas com a certeza de ser ouvida: - Cê ainda tem coragem de falar de Deus, Gilson? Cê vive se enfiando com hômi, aí no seu quarto... o filho retruca: - Que hômi, mãe? Que hômi, o quê? Durmi sozinho essa noite!, a mãe de Gilson, que se tornara evangélica após a morte do companheiro, contra-argumenta, cheia de autoridade: Cê ainda acha que pode falar de Deus, Gilson?, e se vira, apontando o bule de café, avisando o filho de que havia acabado de passar um cafézinho para ele. Vai em direção ao quarto, com a serenidade dos que se crêem livres de pecado. Gilson enche uma xícara e vai atrás dela: - Mãe, eu sou tão filho de Deus, quanto a senhora, quanto o pastor da sua igreja e quanto o cachorro que tá passando aqui na frente de casa agora... Baaam! A última batida de porta. A mãe se tranca no quarto, e de lá continua a ladainha: - Jesus está voltando meu filho... e eu, sinto muito de saber que cê vai ser condenado pra sempre no fogo do inferno! Como sempre fazia, o filho amaldiçoado ainda tem um impulso de falar. Encosta a boca na porta do quarto da mãe e desabafa: - Crente é foda! Faz o diabo a quatro na vida e depois, quando fica velho, entra pra igreja, senta em cima do rabo e fica apontando pro rabo dos outros! E vai dizer que tá errado? “Você vai queimar no fogo do inferno...” e já saindo de casa, diz pra si mesmo: - Ái, meu Santo Amaro, me dá paciência, pelamor de Deus! Antes a mãe fazia tudo que o padrasto mandava. Agora, quem mandava naquela casa era o pastor da igreja. – Vai ser submissa assim, lá na casa do chapéu!, dizia Gilson, sobre sua mãe, pra qualquer cristão que tivesse interesse em ouvir. E Baaaam! Batia a porta ao sair. E assim começava quase toda manhã de sábado naquela casa.
No caminho da feira de sábado, que era o lugar onde tomava o seu café da manhã, Gilson passava em frente ao bar do Bahia, que era o ponto de encontro do pessoal do futebol. Quase todo o time vermelho estava lá. Seu Damião, Diego, Tião Gordo. O centro-avante do time cumprimentou de longe, e ouviu, de dentro do bar: - É amanhã, hein, Gilson? Vai marcar pelo menos um golzinho pra mim, num vai?, era Seu Damião, torcedor fanático do time vermelho e admirador do futebol do moreno. Quando Gilson, já se afastava do boteco, avistou Marivaldo. Devia estar indo pro boteco do Bahia encontrar o pessoal, mas vinha em sua direção. - Rota de colisão! Rota de colisão!, ecoava em sua cabeça, como nos filmes de ficção. Atravessou para o outro lado da calçada. Não queria mais ninguém enchendo o seu saco. Ainda estava de barriga vazia e já havia gasto boa parte da cota diária de paciência com a mãe. E tinha um dia inteiro pela frente. ¬¬- Tá com pressa, Gilson? , disse a indesejada figura, atravessando a rua. Rota de colisão! Rota de colisão! Bloqueou a passagem: - O que cê quer, Marivaldo? To indo na feira..., Gilson deu um drible no brigão e seguiu andando. O outro, não satisfeito com a resposta, nem com o drible que tomara, correu e bloqueou a passagem de novo: - Ta indo na feira? Que foi? Acabou o seu estoque de mandioca? Novo drible e a paciência se esgotava: - Marivaldo, vai encher o saco de outro, vai? Que hoje eu não tô podendo! Marivaldo segurou Gilson pelo braço, e em tom de ameaça, quase que cuspiu: - Escuta aqui, seu viado, filho-da-puta, eu num vô esquecer o que aconteceu naquele dia do jogo, não viu? Gilson virou o rosto de lado e já ia esboçar um sorriso de desdém. A raiva do outro crescia: - E eu, se fosse você, tratava de ter mais cuidado quando andar por aí de noite que tem uma pá de gente que num tá gostando nada da sua valentia, e que tá louquinho pra subí seu gáis... Uma mão negra soltou o braço de Gilson. Era Diego. O capitão do time acabou com aquela discussão e chamou o raivoso camisa sete pra uma conversa, do outro lado da rua. Gilson, ficou paralisado, observando-os sem ouvir uma palavra do que diziam. Diego com o dedo em riste. Marivaldo de cabeça baixa. Vermelho, os olhos pegando fogo. Parecia que ia explodir. Não durou nem dois minuto a cena. Diego voltou pro lado de Gilson, dizendo: ¬- Esse daí num vai te incomodar nunca mais! O outro, antes de subir a rua, em direção ao bar, deu uma olhada, de canto de olho, para os dois. Baixou a cabeça e começou a andar. Gilson teria companhia para o seu café da manhã na feira. O peito batucava esquisito.
V
Passaram a tarde toda juntos. As pazes. De noite, arrumaram-se e foram para a festa de aniversário da Associação dos amigos do bairro. A Casa cheia. De gente muito boa e de gente muito ruim. Foram juntos. Ficaram juntos. Na festa, algumas pessoas conhecidas, fizeram de conta que nem os viam. Como se desconhecidos fossem. Já esperavam por isso. Gilson já estava era acostumado com isso. Rebeca e alguns amigos de Diego, do movimento social do bairro, curtiam junto com eles. Fizeram uma grande roda, no meio do salão. Fora daquela roda, cara feia era mato. Mas, estavam juntos. E bebiam. E conversavam. E davam risada. E dançavam. E dançavam. E dançavam até quase não poder. Tontura boa. Mas, havia, por ali, muita gente ruim. No auge da felicidade. Umas tantas da madrugada. Resolveram fazer um abraço coletivo. Gilson e Diego se um selinho inocente. Como virou moda entre pessoas famosas. Acontece, que eles não eram gente famosa. Coisa feia dois homens se beijando! Gente Feia é o que eram.
A música nem parou quando jogaram Rebeca no chão. Nem quando empurraram mais uns três, quatro, antes de arrastarem Diego e Gilson pra fora do baile. Três homens. Zoínho, Da lua e Marcelo, guindaram os dois para a rua. Três armas pra fora da calça. Duas delas apontadas para o rosto de Gilson. Outra pra cabeça de Diego. – Cês são bicha, caráio? Gilson já ouvira aquela frase em algum lugar. Pra Diego era a primeira vez. Derrubaram os dois no chão e começaram a chutar e a xingar: - Seus viado, filho-da-puta! Vâmu subí o gáis de vocês. Chutaram mais e apontaram as armas.
Alguém tinha saído da sedinha, onde a música tocava alta, e chegou, despercebido, ao lado dos três homens que ainda estavam de pé. – Cês tão loco, caráio! Vão zerá o Gílsu e o Diego? No dia da festa da Sedinha? Aqui na frente de todo mundo? Era o Nikimba, dono do comércio paralelo local. Armas guardadas. Gilson e Diego de novo de pé. Zoínho ainda tentou argumentar: ¬- Tá certo, Nikimba, que ia ser o auê máximo zerar essas duas bicha, em dia de festa, aqui na frente da sedinha, mas essas bicha do caráio deram mó mi, lá, na festa, jogando a viadáge deles na cara de todo mundo... pô, Nikimba, cê num viu, não? Nikimba, nem respondeu. Mandou todo mundo sair andando. ¬¬– Zóio, cê fica! E você também, Gilson... Diego saiu andando, desconfiado, não estava disposto a deixar Gilson, sozinho com o cara mais sangue no olho de toda a cidade. Gilson tranqüilizou-o: ¬- Me espera na minha rua, Diego... vai indo que eu já vou! Descrente, Diego estacou. Nikimba se virou pra ele e gritou: - Cê num ouviu o que o cara falou, maluco? Vai... dá linha no seu pipa, doidão! Diego ainda demorou um pouco pra sair dali, mas a tranqüilidade nos olhos de Gilson o convenceu. Gilson sabia o que estava fazendo.
O chefe do crime de toda a Zona Sul da cidade, olhou para Zóinho e falou, baixinho: ¬- Aê, ladrão, esse maluco aí - e apontou para Gilson - é um dos cara, junto com o Finado Gordinho e com o Finado Nenê, que pagou tudo os veneno que eu paguei na rua, quando era muleque, cê num lembra das estória que eu já te contei, então! Os olhos pequenos do rapaz se abriram de um jeito que parecia impossível até então. – E você pode ter certeza, ladrão – continuou Nikimba – que assim como eu fiz com os filha-da-puta que mataram os dois, se alguém fizer alguma coisa pra esse cara aí... eu num vô descansá até mandá o arrombado pro inferno, tá ligado? Num interessa o que o maluco fáiz com a vida dele, Zóio, o Gílsu, assim como o Finado Gordinho e o Finado Nenê – que Deus os tenha em bom lugar - é um irmão de rua meu, maluco! Zoínho, que agora parecia um menino que foi pego fazendo besteira, já se preparava pra pedir desculpa, quando O Cara do bairro, ordenou, como um pai faria: - Vai pra casa, vai Zóio, num pega nada! E, passando a mão em sua cabeça, alertou: - Cê é um malandro de conceito, mano! Num é desses bico que fica por aí, dando sorte pro azar! Já pensou se eu num tivesse aqui? Ó o milho...
Zoínho pegara o caminho de volta pra casa. Gilson já se preparava para também pegar o seu. Nikimba pega em seu braço e olhando fundo nos seus olhos: - Pêra aí, que ainda num terminei, Gílsu. O moreno estava preocupado. Será que o Diego ainda vai estar me esperando, lá na rua? E amanhã ainda tem o jogo, caramba! Virou-se para o antigo companheiro de noites frias à toa. Nikimba tinha se tornado um homem enorme. A sua cara fechada e a sua fama davam medo em qualquer um. Menos em Gilson. – Olha, Gílsu, enquanto eu tiver por aqui, você pode ficar tranqüilo que malandro nenhum põe a mão em você. Eu quero te ver feliz, Gílsu e espero que o Diego possa te fazer feliz como eu não pude fazer, tá ligado? Agora, vai lá que o maluco tá te esperando... e vê se se cuida, firmeza? Amanhã eu te vejo lá no jogo... Gilson não pronunciou palavra. Seguiu correndo para casa. Ái meu Santo Amaro! Ainda tem o jogo! Agora, tinha que encontrar Diego... o jogo era só amanhã.
VI
Os barrancos ao lado do campo estavam lotados. Todo mundo do bairro queria ver a final do campeonato. Mas se alguém prestasse atenção no time vermelho perceberia que o camisa nove não estava lá no meio do campo. Nem o camisa dez. Gilson e Diego chegaram correndo, de uniforme e chuteiras, momentos antes do juiz dar o apito inicial. Quando se dirigiam para o campo, foram barrados pelo Seu Antenor, técnico dos vermelhos, que entrando na frente dos dois falou, meio sem jeito: - Hoje vocês vão ficar no banco... a rapaziada se reuniu ontem no Bahia e decidiu que, depois do que aconteceu no outro jogo, o melhor para o time é que vocês dois não começassem jogando... Os dois entenderam tudo. Na hora. Marivaldo armara tudo. Se olharam e continuaram a ouvir, pacientemente. ¬– Se a porca apertar e a gente tomar um gol, ou não marcar nenhum eu coloco vocês dois... mais tardar, na virada do segundo tempo. Gilson, que já estava com um tom de pele que combinava com a camisa do time, já ia dizendo alguma coisa, mas, Diego atalhou, segurando-o pelo ombro: - Ué, Seu Antenor, ontem eu tava lá, no Bahia, e ninguém veio falar nada comigo! Eu já sei que papo é esse de banco pra gente... quer saber? Isso é trairagem que o Valdinho armou e que o time inteiro abraçou... e sabe o que mais, Seu Antenor? Bota o diabo no banco e quando o time tiver tomando um chocolate do tamanho de um trem, o Senhor chama ele pra jogar! O velho negro, branco ficou. E Diego ainda tinha mais a dizer: - eu sempre achei o senhor um homem bom, Seu Antenor, e sempre te respeitei! Mas, depois dessa última, eu quero mais é que o senhor enfie todo o seu preconceito, junto com o time e o banco de reservas no rabo, seu Antenor, no rabo...e... E ia falar mais, mas Gilson puxou-o e falou em seu ouvido: - Já tá bom, Di, o velho já entendeu a nossa mensagem, agora vamos lá tomar uma cervejinha e assistir esse bando de perna-de-pau jogar bola!
O resultado do jogo? Bem naquele dia, a torcida da casa não gritou gol. Nenhuma vez. Em compensação, a pequena torcida do time contrário, comemorou três vezes. No meio do jogo, quem reparasse no técnico dos vermelhos, veria um senhor negro, quase vermelho, passando mãos desesperadas nos ralos cabelos e olhando, de quando em quando para o barranco apinhado de gente, como quem procura alguém. No caso, procurava dois “alguéns”. Que tomavam cerveja, de costas pro campo, junto com Seu Damião, que ao saber da decisão do time, pulara fora do grupo. Os três amigos estavam em outra.
Com o apito final, o campo ficou só. Quase vazio para a entrega do troféu e comemoração do time visitante. Gilson e Diego, caminho pra casa, ainda de uniforme, passaram por Marivaldo, que caminhava, inconsolável, para o vestiário. Dessa vez, não teve ninguém pra segurar Gilson, que gritou: - Ué! Cadê os gols Marivaldo? Eu pensei que era só o Diego e eu que ficaríamos de fora hoje... mas, pelo jeito, você também nuão jogou, né? E Diego emendou: - E não se esqueça do nosso segredinho, hein, Valdinho? Mais uma sua e ele vai sair estampado no jornal do Zé Povinho do bairro. O camisa sete, que poderia ter ganhado o jogo para os vermelhos, se competência tivesse, ao ouvir Diego, baixara ainda mais a cabeça e entrara correndo, envergonhado, no vestiário.
Gilson e Diego já desciam a ladeira em direção a suas casas, quando Gilson se vira para Diego e pergunta: - Di, mas, afinal de contas, o que foi que você disse pro Marivaldo aquele dia? Que segredinho é esse, que calou a boca do cristão? Diego, com um sorriso levado no rosto, contou: - É que eu falei que se eu ficasse sabendo que ele continuava te infernizando, ia contar pra todo o pessoal do bar do Bahia, da Associação e do bairro todo, que quando a gente era moleque fazia troca-troca lá atrás da Sedinha e que o Valdinho só gostava de ser a mãezinha na brincadeira! O Gilson botou a mão na boca: - o Marivaldo? Geente, que babado! Diego ainda brincou: ¬¬¬- Tá vendo, Gilson, quem mandou você nunca dar bola pra ele... e riu. O outro, deu um tapinha na sua bunda e riu também. Continuaram descendo a ladeira. Abraçados. Caminho de casa. Estavam juntos.
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